Cansar de Amar: vínculos, afetividades e papéis no universo gay sob a luz do Psicodrama

Por que, para tantos homens gays, amar cansa?
Neste artigo, Wesley Miranda, psicólogo e psicodramatista mergulha com coragem e sensibilidade nas dores e nos desafios do afeto vivido por homens gays em uma sociedade que ainda hostiliza suas formas de amar. A partir de sua história pessoal e do olhar clínico do Psicodrama, ele nos convida a refletir sobre os impactos da homofobia, dos papéis cristalizados e da dificuldade em criar vínculos verdadeiros. Um texto que mistura teoria, vivência e poesia, e nos lembra que transformar os afetos é, também, um ato político.

· LGBTQIA,PSICODRAMA

Sou um homem gay que cresceu em uma famíliaconservadora, religiosa e cristã. Desde cedo, aprendi que o amor legítimo era apenas aquele vivido entre um homem e uma mulher. Qualquer outra forma de amar era considerada pecado, erro, desvio. Cresci acreditando que havia algo errado comigo. Por ser sensível demais, delicado demais, por não corresponder às expectativas sociais do que é ser homem, fui silenciado, discriminado e, muitas vezes, negligenciado afetivamente. Meu corpo, minha voz e meu afeto foram moldados à força por olhares que não me viam e discursos que me excluíam.

Foi apenas na vida adulta, através da Psicologia, da arte e, especialmente, do
Psicodrama, que comecei a compreender as marcas que essa história deixou nos
meus vínculos. A dor de não se sentir digno de amor. O medo constante de
rejeição. A autoexigência para corresponder a papéis que nunca me pertenceram.
Esse artigo nasce do desejo de compreender — a partir da minha trajetória e das
lentes do Psicodrama — por que, para tantos homens gays, amar cansa.

O Psicodrama, criado por Jacob Levy Moreno,parte da ideia de que somos seres relacionais, que nos construímos a partir de
papéis que assumimos em diferentes contextos sociais, afetivos e culturais.
Segundo Moreno (1993), o ser humano é um “ser de papéis” e, quando esses papéis
não são desenvolvidos de forma espontânea, ele adoece.

No universo gay contemporâneo, muitos desses papéis se cristalizam a partir de
vivências marcadas por exclusão, vergonha e medo. O papel afetivo, em especial,
é frequentemente prejudicado por histórias de rejeição, impossibilidade de amar
livremente e necessidade de proteção emocional. O resultado é uma forma de se
relacionar muitas vezes marcada por defesas, fugas e idealizações.

A espontaneidade, conceito central do Psicodrama, é definida por Moreno (1997)
como “a resposta nova a uma situação antiga ou uma resposta adequada a uma
situação nova”. No entanto, ser espontâneo afetivamente requer segurança,
confiança e permissão interna — condições muitas vezes ausentes em uma sociedade
que hostiliza afetos dissidentes. A performance do desapego, do autocontrole,
da frieza emocional se torna um mecanismo de defesa que nos impede de viver
encontros verdadeiros.

Para Penha Nery (2012), os vínculos afetivos são estruturantes da experiência
humana e se dividem em diferentes tipos: vínculo de dependência, vínculo de
idealização, vínculo de evitação e o vínculo criador. Cada um desses tipos se
manifesta em nossas relações e está diretamente ligado aos papéis que
conseguimos (ou não) desenvolver.

No caso de homens gays, é comum observar o predomínio de vínculos de evitação e
idealização — por medo de se envolver demais ou por projetar no outro uma
perfeição que substitui a conexão real. A vivência do amor, nesses contextos,
se torna um campo de tensão: queremos ser amados, mas tememos a dor. Queremos
vínculo, mas não sabemos como criá-lo sem repetir feridas antigas.

Essa dinâmica é agravada pela homofobia internalizada, conceito desenvolvido
por Herek (2004), que descreve o processo pelo qual a pessoa LGBTQIA+ incorpora
os discursos sociais negativos sobre sua identidade. Isso gera vergonha,
autodepreciação, dificuldade de se reconhecer como merecedora de afeto e
comportamentos de autossabotagem nas relações.

Somado a isso, há a pressão estética, o culto à juventude, o medo de demonstrar
emoções e a fetichização dos corpos que compõem o imaginário da cultura gay
dominante — todos elementos que dificultam a vivência de vínculos autênticos e
saudáveis.

No Psicodrama, acreditamos que todo papel pode ser desenvolvido. Isso significa
que é possível ensaiar outras formas de amar, de se relacionar, de existir no
mundo. Por meio de vivências, dramatizações e encontros genuínos, é possível
transformar vínculos adoecidos em vínculos criadores — pautados no cuidado, na
liberdade, na reciprocidade e na verdade emocional.
Amar, para muitos homens gays, é umterritório conflituoso. Cansa porque ainda carregamos, nos nossos corpos e
histórias, o peso de sermos ensinados que o nosso amor não vale, que nosso
afeto é menor, que nosso desejo é errado.

Mas também é possível ressignificar. A partir da escuta, da cena, do grupo e do
corpo em ação — pilares do Psicodrama —, podemos criar novas possibilidades de
vínculo. Podemos deixar de apenas reagir ao trauma e começar a construir
relações mais conscientes, leves e verdadeiras.

Desenvolver o papel afetivo é um ato político e terapêutico. É escolher amar
sem pedir desculpas. É permitir-se viver o encontro sem medo de parecer
vulnerável. É confiar que existe beleza na delicadeza. E que amar, apesar de
tudo, ainda é o caminho.

por Wesley Miranda.