Ney Matogrosso – Corpo em Cena, Verdade em Voz

Análise pessoal do filme "Homem com H" de Ney Matogrosso, através da percepção de Wesley Miranda.

· LGBTQIA


Acabei de assistir ao filme “Homem com H” e estou profundamenteimpactado. Não apenas pela trajetória artística de Ney Matogrosso, mas pelo que
ele encarna — ou melhor, performa — com seu corpo, sua voz, sua ousadia e sua
resistência. Ney não é apenas um cantor. Ele é um acontecimento. É um ser em
permanente reinvenção, que faz da arte o seu palco de verdade.

Fiquei com a sensação de que o filme não conta só a história de umartista, mas também a de muitos de nós. De quem vive a marginalidade como
palco, de quem tem o corpo como território político, de quem ousou existir fora
das normas — e precisou, muitas vezes, pagar um preço alto por isso. Como
psicólogo, psicodramatista e também sujeito LGBTQIA+, reconheço em Ney algo que
Moreno já chamava de espontaneidade criadora: ele não repete papéis, ele os
transforma.

Em Ney, vejo uma das expressões mais vivas do Psicodrama. Eleencarna papéis que desestabilizam o que esperam do “masculino”. Ele canta
agudo, dança com os quadris, beija com os olhos, geme com a voz. Transita entre
o erótico e o poético com uma liberdade que me emociona. Cada performance sua é
uma cena dramatúrgica completa, onde ele é protagonista, diretor e testemunha
do próprio processo criativo.

Essa liberdade de papéis me remete à ideia de que o palco não éapenas um lugar para atuar, mas também um espaço para ser. Um ser que se
experimenta, que se revê, que se permite, que se cura. E Ney faz isso com
maestria: ele se cura e nos cura ao mesmo tempo, porque nos permite ver no
espelho da sua arte tudo aquilo que tentaram arrancar de nós — brilho,
sensualidade, afeto, voz.

Uma das cenas mais comoventes do filme é quando Ney relembra, deforma sutil mas poderosa, sua vivência ao lado do companheiro Marcos,
diagnosticado com HIV em um tempo em que os tratamentos ainda eram recentes e
pouco eficazes. Em uma conversa íntima, Marcos, já fragilizado, avisa que
perderá o cabelo, emagrecerá, ficará debilitado — e que Ney não precisava
permanecer ao seu lado naquele momento tão difícil. Era quase um gesto de
liberação: “você não precisa passar por isso comigo”. Mas Ney, firme e sereno,
responde com amor: o HIV não o definia, e a AIDS não impediria o amor de
continuar existindo enquanto houvesse vida. Ele escolhe ficar. Escolhe amar. E
o filme mostra cenas delicadas e profundamente tocantes de Ney cuidando de
Marcos no hospital — com mãos firmes, olhos atentos, e um silêncio sonoro de
afeto que se intensifica no ruído das máquinas. O espectador compreende, sem
palavras, que Marcos faleceu em decorrência da AIDS. Mas o que fica na cena não
é a morte — é o amor. É o compromisso com a dignidade de viver e morrer
acompanhado. E essa escolha, de permanecer, de cuidar, de amar até o fim, é um
ato radical de resistência contra o estigma.

A epidemia de HIV/AIDS, que emergiu nos anos 1980, teve um impactodevastador na comunidade LGBTQIA+, especialmente entre homens gays e
bissexuais. Naquela época, a doença era frequentemente referida como “peste
gay” ou “câncer gay”, refletindo o estigma e o preconceito associados à
orientação sexual dos afetados. Richard Parker, em sua obra "Na Contramão da
AIDS", oferece uma análise crítica das principais tendências que têm
caracterizado a resposta frente à AIDS nos últimos anos do século XX, no Brasil
e no mundo. Ele destaca como fatores sociais e políticos influenciaram a forma
como a doença foi abordada, especialmente em relação às populações
marginalizadas.

Outro ponto que me atravessou foi sua relação com o pai. A ausência,o não-dito, a tentativa de moldá-lo a um ideal masculino que nunca coube em si.
Ney fala disso sem rancor, mas com uma maturidade que revela cicatriz. E como
dói essa cicatriz para quem é LGBT+.

Muitos de nós temos histórias parecidas. Crescemos tentandoperformar um papel de filho esperado, de homem aceitável, de corpo respeitável.
Mas, como Ney, alguns de nós escolhem quebrar esse script. A masculinidade que
esperavam de mim era uma prisão. Eu escolhi dançar.

E dançar é o que Ney faz. Ele dança para fora das caixinhas. Eledança como grito. Como reza. Como política.

Porque ainda vivemos num país onde a homofobia mata — com balas, compiadas, com silêncios, com abandonos. Porque ainda somos julgados pelo modo
como falamos, nos vestimos, amamos. Porque ainda temos que justificar nossa
existência. E Ney nos lembra que a arte pode ser nossa trincheira mais bonita.

A atuação de Jesuíta Barbosa como Ney é brilhante. O ator entregauma performance impressionante, capturando com precisão os trejeitos, a voz e a
presença cênica de Ney Matogrosso. Sua dedicação ao papel é evidente, desde a
caracterização física até a expressão da complexidade emocional do artista.
Jesuíta consegue transmitir a essência indomável de Ney, refletindo sua luta
contra as normas sociais e sua busca por liberdade e autenticidade. Essa
entrega contribui significativamente para o impacto emocional do filme.

“Homem com H” é um documento histórico, poético e necessário. Elenão fala só de Ney, mas da potência de sermos quem somos — mesmo (e
principalmente) quando isso desafia o mundo.

Ney me inspira a continuar acreditando na arte como cura, na cenacomo território de transformação, e no corpo como manifesto político. E se eu
pudesse dizer uma única coisa para ele, seria:

Obrigado, Ney, por cantar o que tantos de nós fomos forçados acalar.