Por Wesley M. Marques – Psicólogo, Psicodramatista
Nos últimos anos, tem sido cadavez mais necessário ampliar o debate sobre as práticas clínicas voltadas ao cuidado de sujeitos diagnosticados com Transtorno de Personalidade Borderline (TPB). Embora haja contribuições relevantes no campo do psicodrama, ainda é um tema pouco aprofundado na literatura da abordagem e que merece ser mais explorado, especialmente considerando a riqueza de recursos técnicos, teóricos e relacionais que o psicodrama pode oferecer nesses casos.
Este texto antecipa algumasreflexões que venho desenvolvendo a partir da minha prática clínica e das minhas pesquisas como psicodramatista. Elas compõem a base de um capítulo que será futuramente publicado em um livro autoral, reunindo aspectos da minha trajetória profissional e do trabalho que realizo na Casa das Cenas Escola de
Psicodrama e Clínica de Psicologia. A intenção aqui é partilhar esse percurso
com outros profissionais, estudantes e interessados na abordagem
psicodramática, convidando à escuta e ao aprofundamento.
O borderline sob o olharpsicodinâmico do psicodrama
A clínica com sujeitosdiagnosticados com borderline exige um olhar que vá além da superfície dos sintomas. Mais do que impulsividade, instabilidade emocional ou crises de raiva, estamos diante de histórias marcadas por vínculos precoces
desorganizados, traumas afetivos, negligência emocional e um sentimento
profundo de vazio e desamparo.
No psicodrama, buscamoscompreender essa estrutura a partir de uma lógica relacional e psicodinâmica.
Como propõe Maria Aparecida Diogo Padovan em uma obra onde ela é a organizadora
"Psicodinâmica dos Transtornos de Personalidade: Um olhar psicodramático",
o sujeito borderline apresenta falhas no desenvolvimento da identidade por
conta de experiências afetivas que não favoreceram a constituição de uma
identidade sólida. As dramatizações de cenas regressivas, quando bem
conduzidas, permitem acessar essas vivências precoces e promover novas
experiências, onde a dor encontra palavra, cena, escuta e acolhimento.
Matriz de identidade e aorigem da fragmentação psíquica
Um dos conceitos mais fecundospara compreender o borderline no psicodrama é o de matriz de identidade, proposto por Moreno (1975) e aprofundado por José Fonseca Filho em Psicodrama da Loucura (1980). A matriz é o campo relacional primário onde o sujeito se constitui, desde a gestação até os primeiros anos de vida, por meio dos
vínculos significativos com os cuidadores. Quando esse campo é instável,
confuso ou violento, a identidade que se estrutura tende a ser frágil,
fragmentada e, muitas vezes, sustentada por papéis defensivos. Esses papéis,
que originalmente emergem como formas adaptativas de sobrevivência psíquica,
acabam por configurar uma organização interna marcada por intensas flutuações
afetivas, instabilidade relacional e dificuldade na constituição de um
sentimento coeso de si.
Papéis psicodramáticos e aampliação do repertório interno
Moreno (1975) já nos dizia: aidentidade é composta pela soma dos papéis que desempenhamos. Para ele, os papéis não são meramente sociais ou comportamentais, mas expressões vivas da identidade do sujeito, desenvolvidas na intersecção entre o mundo interno e o contexto relacional. Cada papel contém uma dimensão somática, afetiva e cognitiva, sendo construído a partir das interações significativas ao longo da vida especialmente nas experiências primárias com figuras cuidadoras.
No sujeito borderline, observamosuma repetição de papéis emocionais e relacionais limitados, reativos e pouco integrados. São papéis internalizados de forma disfuncional, muitas vezes ancorados na dor, na insegurança e na falta de validação emocional. Assim, esse sujeito tende a oscilar entre a idealização e o rebaixamento do outro, entre a
busca de fusão total e o afastamento abrupto, entre o afeto intenso e a raiva
desproporcional. Essa dinâmica relacional não é mero comportamento, é expressão
de um repertório de papéis rígidos, empobrecidos e profundamente marcados por
experiências relacionais precoces que não possibilitaram a vivência de papéis
de confiança, autonomia e continuidade afetiva.
Espontaneidade: o caminho paranovas possibilidades
Outro conceito central nopsicodrama é o de espontaneidade, originalmente formulado por Moreno (1975)
para ele, a espontaneidade é uma função essencial para a saúde psíquica, pois
permite que o sujeito ofereça uma resposta nova a uma situação antiga, ou uma
resposta adequada a uma situação nova, rompendo com automatismos emocionais e
padrões repetitivos de comportamento. É essa força que dá vitalidade ao
psiquismo e torna possível a criação de novos papéis e novas formas de estar no
mundo.
Alfredo Naffah Neto aprofundaesse conceito ao considerá-lo uma função transformadora do eu, ligada à possibilidade de simbolização e elaboração subjetiva da experiência. Para Naffah (1997), a espontaneidade é um estado de abertura que depende da ativação de uma disposição interna, mas também de um campo relacional que a acolha e a estimule. Ou seja, não se trata apenas de uma capacidade individual, mas de algo que emerge na relação, especialmente quando o sujeito é acolhido em sua
vulnerabilidade e ambivalência.
No caso do transtorno depersonalidade borderline, o funcionamento psíquico é marcado por respostas
emocionais automatizadas e rígidas, derivadas de vivências precoces de ameaça,
desamparo e instabilidade. As reações não são escolhas conscientes, mas modos
de defesa sedimentados, que se repetem como se fossem a única resposta possível
à dor do vínculo. A espontaneidade, nesses casos, se encontra inibida não por
falta de potencial criativo, mas porque o sujeito não encontrou, até então, um
ambiente suficientemente seguro para se arriscar a experimentar algo diferente.
No setting psicodramático, comsua proposta vivencial, estética e dialógica, cria-se um espaço que favorece a emergência da espontaneidade como possibilidade real. O sujeito é convidado a ir para ação, reviver e transformar suas cenas internas, ensaiando novas respostas em um contexto protegido, onde o erro não implica rejeição e o afeto
pode ser reconstruído em novas bases. Assim, a espontaneidade não é apenas uma
técnica, mas uma via de reconstrução da identidade, fundamental para que o
paciente borderline possa sair do ciclo repetitivo de dor e abrir-se à criação
de novas possibilidades de papel, vínculo e existência.
O terapeuta como ego auxiliar
o vínculo com o terapeuta é umdos maiores recursos e, ao mesmo tempo, um dos maiores desafios do processo psicoterapêutico. A transferência é intensa, permeada por idealizações e temores profundos de abandono. A confiança é constantemente testada, e os limites entre terapeuta e paciente são frequentemente tensionados, demandando do profissional um manejo cuidadoso, firme e sensível. É nesse cenário que o papel
do terapeuta como ego auxiliar, conforme conceituado por Rosa Cukier (2017),
torna-se indispensável.
O ego auxiliar, originalmentepensado por Moreno como papel coadjuvante no palco psicodramático, é ampliado
por Cukier em sua proposta psicodramática relacional. Para ela, o ego auxiliar
é uma função terapêutica que vai além da condução técnica da sessão: trata-se
de sustentar, por meio da presença empática e da escuta ativa, as partes
fragmentadas do paciente especialmente aquelas que não puderam se desenvolver
plenamente devido a falhas ambientais precoces.
Sociometria e reconstrução doátomo social
A sociometria, uma das grandescontribuições de Moreno, permite mapear o átomo social do paciente: suas figuras de referência, suas exclusões, suas repetições. Esse mapeamento não é apenas técnico. Ele permite que o paciente veja sua rede de vínculos com mais clareza e consciência. Em muitos casos, a sociometria se torna o ponto de partida para a reconstrução de uma rede de apoio confiável e afetiva, tão
essencial nos momentos de crise. Rosa Cukier no livro "Psicodrama
Bipessoal: Sua técnica, seu terapeuta e seu paciente 1992" apresenta o
conceito de átomo social integrado ao processo de psicoterapia psicodramática.
Segundo ela, como técnica a investigação dramática do átomo social visa
explorar o contexto sociométrico ao qual o paciente está inserido, explorar
seus papeis e as condições de cada vínculo nas relações.
Portanto o psicodrama, enquantoabordagem potente, viva e humanizadora, oferece ao tratamento do transtorno de personalidade borderline um caminho profundo, sensível e transformador. Ao integrar corpo, afeto, palavra e ação, ele permite que o sujeito não apenas fale sobre sua dor, mas a vivencie e ressignifique em cena. Trabalha-se o
vínculo, a identidade, os papéis internalizados, os conflitos afetivos e a
história corporal do paciente sempre em busca de ampliar a espontaneidade e
restaurar o sentido de si. Mais do que interpretar, o psicodrama convida a
reviver e reorganizar, em um espaço de acolhimento e criação. Cada ação se
torna uma possibilidade de reparação simbólica, onde o paciente pode
experimentar novas formas de estar no mundo, com o outro e consigo mesmo.
Assim, o psicodrama se apresenta não apenas como uma técnica, mas como uma
prática ética e estética de cuidado, uma clínica do encontro, da presença e da
reconstrução da subjetividade.